Laboratório do Tremere: Wraith – The Oblivion

Lançado em 1996, ​Aparição: O Esquecimento 2ª edição – em tradução livre – foi o quarto jogo da série Mundo das Trevas (ou WoD – sigla em inglês para World of Darkness), cuja temática mostrava-se ainda mais densa, mesmo para os padrões de seus antecessores.

Neste mundo as sombras são quase onipresentes e todo grande acontecimento tem por trás uma entidade ou evento sobrenatural. Porém, não é somente a sobrevivência a maior conquista dos personagens nas sessões de horror que esse cenário propõe. Para uma aparição, o maior deleite é sentir-se lembrada por seus entes queridos e por suas conquistas e façanhas em vida. Ter mais um dia ao lado daquilo (ou daqueles) que amava é a maior força motivadora do personagem. Porém, nesse quadro maior surge a proposta de Wraith: representar alguém que teve a própria vida ceifada pelas frias garras da morte.

Infelizmente, o jogo não teve versão em português e mesmo sua versão original em inglês foi descontinuada pela White Wolf (produtora do jogo nos EUA). Por essa razão, muitas das palavras em português aqui são uma tradução livre utilizada pelos jogadores do grupo Teatro de Mesa, podendo diferir dos termos utilizados por outros jogadores de Wraith pelo Brasil.

A linha de Wraith teve seu último suplemento lançado sob o título de ​Ends of Empire em 1999 e encerrou oficialmente as publicações da linha a partir de então.

Uma das razões alegadas pela White Wolf para a descontinuidade foi exatamente a atmosfera que o jogo oferecia, uma vez que o tema abordado pode ser denso para alguns e, portanto, com pouca receptividade entre os jogadores.

Características: O néctar e as âncoras dos mortos

As características mais marcantes deste jogo são as Paixões e Grilhões. Resumidamente, uma paixão é um propósito ou objetivo que motiva a aparição a continuar existindo após a morte. Ela é composta por uma sentença, uma emoção central para a paixão e um nível de 1 a 5. Alguns exemplos de Paixões podem ser: Vingar minha morte (Raiva) 4; Proteger minha família (Amor) 3, Rever minha cidade natal (Saudade) 2 e, ainda, Cuidar de moradores rua (Compaixão) 1. No total, os níveis de Paixões chegam a 10 pontos durante a criação do personagem.

O mais interessante é que uma mesma paixão pode ser alimentada por uma emoção diferente. No primeiro exemplo, um jogador com uma paixão semelhante poderia ter uma emoção motivadora diferente, como “Vingar minha morte (Justiça) 3”. Sempre que faz algo que ajude a aparição a cumprir esse propósito ou ao experimentar uma das emoções que alimentam suas paixões (como atos de justiça, do último exemplo) a aparição ganha pontos de ​Pathos​, a energia emocional que as sustenta. E como se ela “bebesse” a energia vinda de tais atos ou cujas emoções sejam parecidas.

Já os Grilhões são coisas, pessoas ou lugares, que “amarram” a aparição nas Terras Sombrias e as impedem de descansar. Diferentes das Paixões, os Grilhões são compostos apenas por nomes e níveis de 1 a 5. Exemplos de Grilhões seriam: Antigo escritório 2, Minha esposa 4, Retrato de Família 2, Sala da biblioteca 3 e assim por diante.

Os Grilhões são úteis para todas as aparições. Uma aparição não pode ficar tanto tempo nas Terras Sombrias se não possuir nada que a “prenda naquele mundo”. Além do mais, quando atacada por outras criaturas e ferida, uma aparição pode repousar próxima a um de seus Grilhões para recompor seu Corpus (uma espécie de casca ectoplásmica que dá forma a elas no mundo dos mortos). Diferente dos espíritos de outras partes da Umbra, as aparições não são compostas por efêmera.

O poder especial das aparições são os Arcanoi, que as permitem realizar diversos feitos sobrenaturais como: viajar de forma relativamente segura pela Tempestade (Argos), manifestar-se fisicamente no mundo dos vivos (Encarnação), ler o destino dos outros e manipular a sorte a seu favor (Fatalismo), poderes de ​poltergeist (Ira) e até mesmo combater a Sombra de outras aparições (Penitência).

O Esquecimento

Jogadores veteranos de Storyteller certamente conhecem 3 principais forças cósmicas que governam o universo. Os Magos a chamam de tríade metafísica: o Dinamismo (força caótica da criação em constante mudança), a Estase (força que dá forma às coisas criadas) e Entropia (que dá fim às formas e as devolve ao nada para entrarem no ciclo cósmico novamente). Os Lobisomens as chamam de Wyld, Weaver e Wyrm, respectivamente.

Em Wraith, uma “quarta força” entra em jogo: O Oblívio, também chamado de Esquecimento ou Limbo. Embora seja muitas vezes confundido com a Wyrm, o Esquecimento é uma força muito mais passiva do que uma tentativa ativa de acabar com todas as coisas. É uma força passiva, porém irresistível. No final, todas as coisas criadas no universo caem no grande vazio que é o Esquecimento. No Mundo Inferior, ele funciona como o Sol para os vivos, pois tudo gira ao seu redor e tudo será inevitavelmente esmagado por sua gravidade.

Sombra: O maior inimigo da Aparição

Toda linha Storyteller tem como premissa o fato de que os maiores desafios enfrentados pelos personagens serão seus próprios medos ou fraquezas (como a luta eterna de um vampiro que busca manter o mínimo de Humanidade em sua alma) mas nenhum deles apresentou isso de maneira tão tangível quanto Wraith.

Explico. Em Wraith, todo personagem possui um lado sombrio que representa as decepções, fraquezas, dores e defeitos que o personagem tinha – ou viveu – ainda em vida. Quando se depara com o fato de uma existência eterna no mundo dos mortos, esses sentimentos adquirem consciência própria. O objetivo dessa consciência, chamada Sombra, é somente um: dar fim a sua dor e acabar com a própria existência. Como a Sombra não passa de um outro lado da consciência do personagem ela terá de levar a aparição junto consigo para o Esquecimento.

Em momentos de dificuldade a Sombra pode até oferecer “ajuda” para a Psiquê (como também é chamada a personalidade principal do personagem). Ceder a essas tentações fortalece a Sombra e, se ficar forte demais, uma Sombra pode até tentar tomar o controle da Psiquê por um breve período de tempo. Essa é a parte mais interessante e inovadora do jogo, mas também um dos fatores que tornam a interpretação mais difícil e desafiadora, uma vez que um único personagem acaba tendo dois Jogadores interpretando-o (um interpreta a Psiquê e outro a Sombra).

A geografia do mundo dos mortos

Sim, em Wraith o jogador tem a (in)satisfação de representar uma alma errante num mundo de sombras e pesadelos que é o reflexo do mundo dos vivos. Esse reflexo, porém, é claramente distorcido pelo véu da morte (chamado de Mortalha), e o problema é ainda maior quando os personagens descobrem que esse não é o destino final das almas dos mortos…

Esta realidade inicial que se descortina diante do personagem é conhecida como Terras das Sombras (Shadowlands) e situa-se cosmologicamente na região conhecida como Umbra Baixa – que por sua vez é uma das camadas que compõem a Umbra Rasa no cenário de Mundo das Trevas. Nessas terras desoladas, as distâncias e direções são análogas ao mundo dos Breves (como as aparições costumam chamar os viventes), mas absolutamente tudo nesses lugares é desprovido de brilho e vida. A visão que surge diante do personagem é absolutamente aterradora: as flores parecem murchas e secas; pessoas no mundo dos vivos que estejam doentes ou próximas da morte já aparentam um semblante pálido; e construções não possuem a luz que costumam ter diante dos olhos dos vivos, mas sim um ar sinistro e decadente, como se prestes a ruir.

Com todos os seus problemas, as Terras Sombrias ainda são o melhor lugar para uma aparição habitar, uma vez que nela ainda poderá ter a chance de estar próxima de pessoas e pertences que tanto amou em vida.

Para os mais (des)aventurados, entretanto, há ainda a Tempestade – um plano de existência que reside imediatamente “abaixo” das Terras das Sombras. Esse lugar é um mar de memórias – aquelas sentidas por vivos e mortos – e, como tal, está sempre agitado e em constante mudança. Neste “lugar”, a aparição está sujeita a todo tipo de visão, que pode ir de corredores de hospitais e campos de concentração até infindos campos verdejantes que levam a lugar nenhum. Pode-se dizer que a Tempestade funciona como uma espécie de mar, porém, enquanto no mundo dos vivos o mar é composto por água, a Tempestade é feita de memórias e emoções. Claro, como a Umbra Baixa é o reino da morte, as emoções aqui fazem com que tal “oceano” seja instável e assustador. Aparições “navegando” pela Tempestade podem se encontrar em quaisquer situações ditas acima e muito mais.

Assim como o nosso oceano cerca os continentes, a Tempestade cerca diversas ilhas de estabilidade conhecidas como Reinos Sombrios, afinal, muitas memórias e crenças resistiram à passagem dos séculos a ponto de “adquirirem forma” neste lugar. O reino mais conhecido pelos jogadores (e que recebe maior espaço no livro básico de Wraith) é o Reino Sombrio de Ferro. Também conhecido como Estígia, esse reino representa em sua maior parte a cultura ocidental e contém os destroços dos reinos caídos de Roma, Grécia e outros que já existiram na história. Mas você também ouvirá falar do Reino Sombrio de Marfim (África), Reino Sombrio de Jade (Ásia) e muitos outros. Existem até mesmo ilhas menores que representam certas culturas específicas ou crenças religiosas; elas são chamadas de ​Praias Distantes​. Aqueles que já não possuem mais Grilhões, passam a maior parte de sua existência nos reinos da Tempestade, conseguindo permanecer muito pouco nas Terras Sombrias. Quanto menos razões prendem a aparição no mundo, mais a força irresistível do Esquecimento as arrasta para a aniquilação total.

Um pouco mais embaixo…

Assim como a Tempestade reside “abaixo” das Terras Sombrias, o ​Labirinto é uma camada mais inferior e está imediatamente abaixo dela. Espalhado por todos os reinos e ilhas dos mares da Tempestade, existem passagens que levam a infindos labirintos repletos de criaturas estranhas que talvez nunca tenham nascido e, assim, sendo moradores eternos do Mundo Inferior. Lá também residem os ​Espectros – aparições cujas Sombras se tornaram tão fortes que tomaram controle permanente da aparição e agora servem ao Limbo. O Labirinto é um lugar que, como as demais partes da Tempestade, está em constante mudança e possui uma escuridão quase tangível. Esse é o lugar onde aparições que tenham sofrido o choque da perda de um de seus Grilhões acabam indo.

O Labirinto é o local onde residem as criaturas mais temíveis do Mundo Inferior. É dito que tais seres sequer já nasceram um dia, tendo uma existência eterna de servidão ao Limbo e são tão antigos quanto a humanidade. Os mortos os conhecem como ​Málfeas​ ou “Nunca-nascidos”, embora seja possível que algumas almas sejam tão antigas e dominadas pelo Esquecimento que possam ter atingido esse estado de existência também.

Finalmente, no coração do Labirinto está o Vazio. Se todo o Mundo Inferior fosse um enorme corpo que ameaça tragar a tudo que existe, então o Vazio seria sua boca. Uma vez aqui, ​não há volta​. O que acontece quando se cai nessa infinita escuridão não se sabe. Mas sabe-se que mesmo Málfeas e outras criaturas o temem e não se aproximam. Esse, claro, é o lugar onde a Sombra mais anseia levar o personagem…

Maelstroms, Aflições e outras ameaças do Mundo Inferior

Às vezes, as memórias e dores da Tempestade se revolvem de tal maneira que acabam por transbordar para os limites das Terras das Sombras; esses eventos, conhecidos por ​Maelstroms (redemoinhos ou turbilhões, em português) são temidos pelos mortos habitantes dessas terras e servem para lembrar-lhes que, no mundo dos mortos, o Esquecimento sempre as chama para o fim. Tais forças são tão abissais que “rasgam” o tecido metafísico que separa a Tempestade das Terras Sombrias e avança sobre as cidades dos mortos, agindo de maneira semelhante a um maremoto quando o mar decide ultrapassar seus limites. Nesses eventos cataclísmicos, hordas de Espectros vagam por suas ondas e atacam qualquer alma desprovida que não tenha algum retiro ou fortaleza para se proteger. A origem dos Maelstroms se dá no próprio Labirinto, que os regurgita para as demais porções do Mundo Inferior, de forma que nem mesmo os Reinos da Tempestade estão livres desses eventos assoladores.

Além dessas tempestades abissais, as aparições estão sujeitas a tempestades internas também. Quando passa por situações de desespero e dor, como a possível perda de um de seus grilhões ou a perda total de seu Corpus, a aparição pode cair num estado de desespero que pode lançá-la para dentro da Tempestade. Porém, não será uma região qualquer dela, mas algum ponto do Labirinto onde os Espectros criarão uma série de pesadelos cujo objetivo é fazer com que a aparição renda-se ao Esquecimento, abandonando de vez sua antiga vida, servindo ao Limbo como um Espectro ou caindo no enorme Vazio da existência. Tais episódios são conhecidos como Aflições, pois de fato a alma aflita precisará resolver uma série de conflitos ligados a sua existência para escapar de tal pesadelo e retornar à segurança das Terras Sombrias ou alguma ilha da Tempestade. É virtualmente impossível encontrar a região do Labirinto em que a aparição se encontra enquanto Aflita. É dito até que a aparição não está num lugar e sim num estado de existência durante esse tormento.

Há uma real possibilidade de que a aparição volte mais fraca do término de uma Aflição. Dependendo de como ela escapou, uma de suas paixões, grilhões ou mesmo seu próprio Corpus retornam em níveis menores. Mais fraca, as chances dela passar por futuras Aflições é ainda maior. As regras, neste caso, representam perfeitamente bem a força de atração lenta, mas gradativa, que o Esquecimento exerce sobre elas.

No fim do túnel… Há Luz!

Com tanto a se falar desse cenário rico, profundo e assustador, muito ainda poderia ser dito sobre o jogo. Mas deixo um tópico especial para encerrar o tema: A Transcendência.

A Transcendência pode ser tanto um objetivo maior para os personagens de Wraith quanto uma poderosa força propulsora que mostra que nem tudo são trevas no mundo. Embora não detalhe o que de fato ocorre com personagens que transcendem (o que seria chato, na verdade), o jogo alimenta a imaginação de Narradores e Jogadores e aponta caminhos para que os personagens resolvam suas dificuldades, desapeguem-se de suas dores ou simplesmente aceitem que algumas coisas simplesmente são o que são. A Transcendência suaviza a pesada narrativa (que tanto assustou jogadores dessa linha) e pode oferecer uma bela história de redenção e superação. Na Transcendência, talvez o personagem realmente descubra o sentido da vida…

Como ocorre com diversos outros títulos da White Wolf, Wraith é um RPG maravilhosamente bem diagramado e escrito. Ilustrações primorosas, regras simples e intuitivas e um cenário extremamente bem detalhado fazem com que Wraith ocupe um local de honra nas prateleiras dos fãs da linha World of Darkness. Histórias assustadoras, mas também muito inspiradoras já foram vividas aqui nas sessões de jogo do Teatro de Mesa.

E você, experimentaria viver essa experiência? A vida é uma só para desperdiçarmos boas oportunidades.

About Wetto

Wellington "Wetto Tremere", formado em letras, escritor e engenheiro.

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