Fala, RPGista! Se você está lendo esse artigo no momento de sua publicação e conhece Cyberpunk 2020 (da R. Talsorian Games), já sabe que esse é o ano do lançamento de Cyberpunk 2077 e que também teremos o RPG de mesa Cyberpunk Red (que se passará em 2045).
“Eu até tentei ouvi-lo. Mas é claro que ele estava mentindo. Com meu ciberáudio eu podia ouvir seu coração acelerado e respiração ofegante. Ele disse que eu era acelerada demais. Disse que eu não tinha tempo pra ele… Além disso, a lerdeza com que ele pronunciava cada palavra só me enojava cada vez mais. Então percebi que ele pouco se importava comigo. Então percebi que eu tinha que ir embora…”
Paciente desconhecido.
Contudo, Cyberpunk 2020 ainda se mantém um jogo fascinante para os amantes do gênero e pode facilmente ser jogado nas mesas da atualidade (poucos itens estão ultrapassados e são facilmente adaptáveis).
Para comemorarmos esse momento, você encontrará aqui alguns artigos apresentando um novo papel para Cyberpunk 2020: O Ciberspsicólogo. Meramente mencionado no livro básico, decidi criar esse personagem mais detalhadamente para uso em nossas sessões de Cyberpunk. Agora ele também poderá ser aproveitado em suas mesas. Mesmo se você nunca jogou esse sistema ou cenário, poderá curtir muito a leitura.
Nessa primeira parte teremos a ambientação e importância do papel do Ciberpsicólogo em campanhas. Em artigos posteriores você terá regras específicas para esses personagens (inclusive com descrições de sua perícia especial: Psicoterapia) e detalhes dos processos de tratamento das mentes ciberpsicóticas. Então, prepare seus implantes e chips e conecte-se!
Ciberpsicólogo
Antes eles costumavam usar Jung ou Freud para tentar entender os sonhos das pessoas e seus segredos. Hoje elas sequer sonham.
Quando as primeiras interfaces homem-máquina permitiram que as pessoas controlassem dispositivos com o mero pensamento, a humanidade dizia ter dado um grande salto evolutivo. Alguns temiam, dizendo que a vida era muito mais que algumas linhas de códigos e programas. Outros já se perguntavam quando poderiam abandonar seus corpos frágeis de carne para habitar um novo padrão hi-tech 2.0 cheio de melhorias.
Mas o tecnochoque mundial aconteceu e, junto com linguagens cada vez mais sofisticadas atuando como intérpretes entre humano e máquina, veio a cultura punk do viva e deixe morrer. Mergulhadas num mundo em que implantes corporais viraram moda e ostentação, as pessoas já passam mais horas conectadas à rede e aos seus dispositivos multimídia implantados do que dormindo, conversando ou se relacionando.
Até aí tudo bem, diziam. Cada um vive como quer, correto?
Errado. A ciberpsicose está aí para qualquer um ver.
Uma vez, um cara entrou num bar xingando todo mundo. Disse que tinha amanhecido, acessado a rede, invadido o sistema da Merryl, Asukaga & Finch em Roma e fritado um cara que tentou roubar seus arquivos numa rede em Munique, antes dele ir a Denver se reunir por algumas horas no Clube de Caça. As inteligências artificiais… “Ah, aquilo é inteligência de verdade” – ele dizia. E de repente ele se vê parado por cinco minutos numa fila para comprar o seu café da manhã! Uma fila dessas é de deixar qualquer um louco no século XXI, claro que uma hora ele agrediria alguém por lá.
Mas você, não! Você já conhece bem as armadilhas da tecnologia e está no controle (nós achamos que está, certo?) Isso não acontece com você. As pessoas são arrastadas pelas máquinas e implantes, mas você é aquele que está na direção. Você conhece os efeitos colaterais de chips de plástico no cérebro. Você sabe monitorar as mentes para que elas se mantenham na linha, para que não seja tarde demais. Com sorte, ainda poderá fazer sua pesquisa de doutorado com alguns membros do Psicoesquadrão e alguns capturados sanguinários cheios de metal no lugar de seus membros.
Para avaliá-los, nada melhor que alguns conectores e ciberpolígrafos implantados, além de analisadores de voz e feições para leitura automática da linguagem corporal de seus pacientes.
Mas claro, são pequenas coisinhas que não fazem mal. Bem, todos pensam assim no início…
“É como um vício, sabe? No início as pessoas mal se falavam numa mesa de restaurante, olhando para a tela de seus celulares. Agora a internet está dentro de suas almas. Não há mais diferença entre o mundo exterior e o mundo virtual. Muitas até preferem o virtual, na verdade”.
– Alice Mustaine (chefe do departamento de ciberpsicologia do Centro Médico de Night City).
A Ciberpsicose em Cyberpunk
Com um cenário incrível, explorando possíveis problemas entre a ligação alma-máquina e seus efeitos na psique humana, o livro traz um preço a se pagar por sair implantando plástico e metal nos personagens: a consequente perda de humanidade. Essa, por sua vez, acarreta na diminuição do atributo Empatia do personagem (sua capacidade de lidar com sentimentos e com outras pessoas). Personagens com 0 no atributo passam a ser controlados pelo mestre, pois começam a se comportar de diversas maneiras estranhas causadas pela ruptura de sua personalidade, podendo inclusive tornarem-se avesso a outras pessoas e seres vivos. E sim, com audição amplificada, mira telescópica nos olhos e braços capazes de entortar barras de aço com facilidade, muitos personagens vão acabar ultrapassando a linha.
Um breve lembrete!
Para você que está curioso ou não se lembra de como funciona, é assim: O personagem tem 10 pontos de Humanidade para cada 1 ponto no atributo Empatia. Tenho 6 pontos de Empatia? Então tenho 60 pontos de Humanidade. Simples assim. Porém, cada implante tem um custo em PH – ou pontos de humanidade. Um ciberóptico com infravermelho, por exemplo, tem um custo de 3 a 13 PH. Já a habilidade de não sentir fome, dor, calor ou frio te custará nada menos que 3 a 18 PH. Esses são valores obtidos lançando-se alguns dados e somando alguns modificadores.
O tratamento
O livro básico de Cyberpunk 2020 traz poucas informações concretas sobre como isso pode ser trabalhado em jogo. Como regra geral, um personagem pode receber um tratamento leve e preventivo que basicamente consiste em realizar sessões regulares de terapia com um Ciberpsicólogo (olha ele aí…) e recuperar 2 pontos de Humanidade por semana. Humm, interessante!
Para casos graves, ou seja, personagens já tomados pela ciberpsicose, o tratamento é mais agressivo. Nesse nível, a pessoa já perdeu sua capacidade de cognição humana e comporta-se mais como máquina que como homem. O tratamento requer medidas extremas e precisará urgentemente da avaliação e definição de métodos de reabilitação prescritos por um Ciberpsicólogo (olha ele aí de novo…). Agora sim, a coisa ficou feia.
(Ok, somente um ciberspsicólogo pode diagnosticar alguém como ciberpsicótico de fato, mas você vai perceber se encontrar algum por aí).
Nesses casos extremos serão aplicadas: dança cerebral, drogas, hipnose, psicocirurgia e terapia aversiva. O intuito é reconstruir a personalidade danificada do personagem. Durante o processo, o personagem recuperará 2 pontos de Empatia por semana (o equivalente a 20 PH).
Fora alguns detalhes aqui e ali no livro, tudo o que temos sobre o tema está aí (páginas 73 a 75).
A rotina de um Ciberpsicólogo
Como personagem, uma série de ideias podem surgir na mente dos jogadores. Além de sua vida rotineira fora do trabalho (o que já oferece ideias suficientes para suas sessões de jogo) o personagem pode atuar dentro de um campo enorme. Antes de tudo, ele é o personagem que mais conhece a mentalidade cyberpunk do grupo, de um ponto de vista clínico, claro. Pode trabalhar para corporações com recrutamento e seleção de pessoal (Solos para segurança armada, Netrunners para cuidar de fortalezas de dados, etc.) além de funções de tratamento e acompanhamento das equipes encarregadas do “trabalho sujo” das companhias (aquelas atividades de espionagem, extorsão e sequestro que as corporações não querem que vazem na mídia).
Mas claro, você não quer ficar numa mesa de escritório ou dando palestras para aqueles que realmente fazem o trabalho divertido, certo? Você quer adrenalina, afinal, é um cyberpunk também.
Para você, sobrou trabalhar em clínicas e hospitais (públicos ou privados) tratando aqueles que passaram da linha e divertindo-se conhecendo por dentro a mente dos loucos que ultrapassaram o limite entre a tecnologia e a loucura. Muitos ciberpsicólogos trabalham elaborando danças cerebrais (espécie de programação de sonho em loop rodando na mente do paciente, com situações que visam tratar aspectos de sua personalidade) ou até mesmo se “logando” em suas mentes e acessando dados coletados pelos processadores neurais para avaliação estímulo-resposta em diferentes situações de estresse.
Isso ainda não te interessa? Então certamente seu lugar será com operadores do Psicoesquadrão, que realizam missões especiais para capturar ciberpsicóticos que estão soltos nas ruas causando problemas por aí. Numa sociedade à beira da loucura tecnológica, seu papel pode ser importante na detecção de quem realmente é uma ameaça potencial. Ah, e essa não é uma tarefa fácil. Tem pessoas com tantos implantes por aí que é preciso um poder de fogo absurdo para pará-las, então trate de ao menos ter uma arma para se defender.
Ei, espere…
“Se a ciberpsicose tem tratamento – até mesmo preventivo – então é só eu me conectar até os dentes e realizar uma consulta rotineira com um Ciberpsicólogo” – você diz. E essa é uma ótima maneira de se tornar uma máquina mortífera de carne e metal e ainda manter-se no limite, certo? Errado de novo, caro cyberpunk. Se as pessoas pudessem simplesmente escapar da loucura cibernética simplesmente batendo um papo com o doutor na esquina, elas certamente o fariam. Mas não é isso o que acontece. Então vamos para algumas razões pela qual a ciberpsicose é a doença do século XXI em Cyberpunk.
Primeiramente, a ciberpsicose é uma ameaça por um simples motivo: Os punks de rua pouco estão se importando. Essa é a realidade nas duras ruas do século XXI.
Você acha mesmo que aquele boosterganguer cheio de implantes vai dizer para seus amigos “Ei, espere, não posso sair hoje à noite. Meu ciberpsicólogo disse estou perdendo o controle”?
Logo no primeiro capítulo, página 4 do livro básico de Cyberpunk 2020, você encontra as 3 premissas da cultura cyberpunk:
1) O Estilo sobre Conteúdo (A aparência acima do conteúdo).
2) A postura é tudo (Faça pensarem que você é perigoso, mesmo que não seja).
3) Viva no limite (Mostre que não teme as consequências).
Outro dado importante. O governo costuma ter um registro e monitoramento de quem compra o que no mercado de implantes cibernéticos. Personagens que busquem os programas públicos de combate à ciberpsicose precisam ficar atentos (página 74 do livro básico).
Outra questão que faz com que o Ciberpsicólogo não seja a cura de todos os problemas do mundo é uma questão puramente econômica: No quebrado século XXI, terapia é luxo ou extrema necessidade. As pessoas que são tratadas normalmente vão contra a própria vontade (por já estarem ciberpsicóticas, provavelmente) ou fazem terapias preventivas em caso de pessoas mais afortunadas. Mas valores de tratamento e quantidade de terapias serão explicadas em outro momento. Apenas saiba que é um processo dispendioso e nenhum cyberpunk abrirá mão de seus suados eurodólares assim tão facilmente.
Agora, sejamos francos. Todos aqui são bem espertinhos e já sabem que, se a ciberpsicose fosse facilmente evitada, o jogo teria diversos personagens se tornando “super-heróis” ao adquirirem dezenas de implantes. E todos sabemos que a proposta do jogo não é essa, correto?
Sim, correto. Dessa vez você acertou. Está pegando o jeito. Está virando um verdadeiro cyberpunk.
Então, se você se interessou pelas possibilidades que esse tipo de personagem oferece, aguarde, pois no próximo artigo você receberá algumas ideias de regras e itens que você poderá colocar em sua campanha, além de minha primeira ciberpsicóloga para usar como referência em suas histórias. Não se desconecte e mantenha-se no limite. Até mais!
Escute o nosso podcast, Assuntos Aleatórios sobre o jogo e o tema Cyberpunk: